quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

«Krasota spasyot mir» (2)

O esterco do mundo
Tenho amigos que rezam a Simone Weil
Há muitos anos reparo em Flanery O'Connor
Rezar deve ser como essas coisas
que dizemos a alguém que dorme
temos e não temos esperança alguma
só a beleza pode descer para salvar-nos
quando as barreiras levantadas
permitirem
às imagens, aos ruídos, aos espúrios sedimentos
integrar o magnífico
cortejo sobre os escombros
Os orantes são mendigos da última hora
remexem profundamente através do vazio
até que neles
o vazio deflagre
São Paulo explica-o na Primeira Carta aos Coríntios
«até agora somos o esterco do mundo»,
citação que Flannery trazia à cabeceira
José Tolentino Mendonça

quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

L'écume des jours (2)

E Chloe morre,depois da lua-de-mel, quando lhe cresce um nenufar no pulmão. Colin é obrigado a vender o pianocktail: tem de trabalhar para ganhar a vida.
E todos nós tocamos o trompete de Boris Vian. Porque a única música que vale a pena é também a música mais triste do mundo.

Cor, Cordis




Por ti pendurei o quadro de uma bailarina

E estive acordado toda a noite

A saber de cor as paredes do teu coração

segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

A Música das Palavras

Retrato de Sophia por Arpad Szenes

No documentário sobre Sophia recentemente exibido na TV 2, Manuel Alegre conta o seu último encontro com a grande poetisa, já no hospital. A esposa pediu-lhe para declamar poesia e ele começou: «Ia e vinha/E a cada coisa perguntava» e Sophia responde: «Que nome tinha». Diz também Camões, mas a certa altura Sophia já não se lembra das palavras, só da música, do ritmo, que trauteava, o que, diz o autor de Praça da Canção, é «o melhor símbolo da Poesia», que ela encarnava.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

Século XX

Para a Sarah


The Fabulous Baker Boys, de Steve Kloves (1989), com Jeff Bridges, Beau Bridges e Michelle Pfeiffer

No telhado de um prédio de apartamentos miseráveis, Jeff Bridges fala com uma menina de nove ou dez anos. Nesse diálogo sabemos que a infância está ao nosso largo, como a cidade a perder de vista, mas que é imponderável.
Na noite anterior, Jeff tinha estado a tocar jazz num bar de amadores. Pequeno e informal. Curvado sobre o seu piano, absolutamente concentrado, escavava sempre mais fundo na dor, com uma espécie de sexto sentido invisível. Acompanhava uma desconhecida que tinha subido ao palco para cantar. Sublinhava as intenções da voz, desenvolvia-as, por baixo, subterraneamente. Havia uma distância entre as notas do piano e a voz, uma independência nas mãos do pianista, uma melancolia naquela variação do tema, enquanto prosseguia sozinho o que a voz tinha anunciado. Os músicos de jazz chamam-lhe swing. O prosseguimento da beleza em território desconhecido, o desenho de uma arquitectura instantânea e efémera, «just for the kicks».
Enquanto caminhava na rua deserta, às quatro da manhã, em direcção a casa, Jeff sentia-se momentaneamente satisfeito. Fumava um cigarro e pensava como se menospreza o sentido de estar vivo, como tudo vale a pena só para se poder sentir a solidão, o ecoar dos próprios pensamentos na noite vazia, o orgulho da própria presença. Mas sabia que era só uma questão de tempo, até chegar a casa, rodar a chave na fechadura, levantar-se no dia seguinte e subitamente deixar de se sentir imbuído em Beleza. Porque existe um desvão na escada da mente para o coração e há qualquer coisa de nós que fica sempre de fora da arquitectura da música, que é a razão pela qual os músicos de jazz depois de um set dizem sempre com as letras todas “Foda-se!”, com descontracção, sem descontracção não há swing, «foda-se» para a melancolia do mundo. Mais tarde, Michelle Pfeiffer acusá-lo-á: «Eu vi-te ontem à noite a repassar os sonhos. Tens talento, não tens? Mas vendes-te a tocar com o teu irmão e comigo música de cocktail em hotéis.»
A menina mora no andar de cima. Costuma descer pela janela e entrar no apartamento de Jeff, quando a mãe leva para a cama mais um namorado. Nas ruas lá em baixo, no café da esquina, na tabacaria, nos bancos de jardim, ecoam em surdina as notas de piano da noite passada. Dos prédios para o telhado, a secção rítmica oscila, swinga, marca o tempo na distância da Memória para o Agora! Jeff Bridges olha a menina com o respeito que só a infância inspira. Jeff Bridges coloca o olhar como Frank Sinatra colocava a voz, e as duas figuras sentadas lado a lado são como uma canção, um standard, «My Funny Valentine» ou «In a Sentimental Way».








S/ Título (New York: 1985)

sábado, 5 de janeiro de 2008

Hospitalidade


« És meu convidado. É uma sorte teres-me encontrado. Eu também deveria ter feito quatro portas na minha casa, uma em cada parede, como fez Abraão.
- Para quê quatro portas?
- Para que os viandantes não tivessem dificuldades em encontrar a entrada.
- E tu, onde aprendeste essas histórias?
- Esta vem no Talmud, em qualquer parte da Mishá.»
Primo Levi, Se Não Agora, Quando?


O meu professor de Literatura Americana na Faculdade de Letras costumava citar muitas vezes, a propósito de Whitman, uma cena da Ilíada, em que, no meio de uma batalha, os dois heróis homéricos páram de lutar, porque descobrem que o pai de um deles fora hóspede do pai do outro. Porque, na Grécia Antiga, o dever de hospitalidade transmitia-se de pais para filhos.
Emmanuel Lévinas, filósofo judeu de origem lituana, em Totalidade e Infinito, a sua obra central, coloca o começo do Pensamento no acolhimento do Outro. O filósofo invoca, repetidas vezes, os direitos do «órfão, viúva e estrangeiro», presentes na Tora. Para Lévinas, o Rosto do Outro, ao trazer à mente a ideia de Infinito, pode ser a presença de Deus.
A palavra umbral vem do latim liminaris, que significa limite, mas também tem dentro o fogo do castelhano lumbre. E eu às vezes penso que a vida se faz nos umbrais das portas, onde primeiro o corpo encontra outro corpo, onde primeiro se entra na habitação.