segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

Século XX

Para a Sarah


The Fabulous Baker Boys, de Steve Kloves (1989), com Jeff Bridges, Beau Bridges e Michelle Pfeiffer

No telhado de um prédio de apartamentos miseráveis, Jeff Bridges fala com uma menina de nove ou dez anos. Nesse diálogo sabemos que a infância está ao nosso largo, como a cidade a perder de vista, mas que é imponderável.
Na noite anterior, Jeff tinha estado a tocar jazz num bar de amadores. Pequeno e informal. Curvado sobre o seu piano, absolutamente concentrado, escavava sempre mais fundo na dor, com uma espécie de sexto sentido invisível. Acompanhava uma desconhecida que tinha subido ao palco para cantar. Sublinhava as intenções da voz, desenvolvia-as, por baixo, subterraneamente. Havia uma distância entre as notas do piano e a voz, uma independência nas mãos do pianista, uma melancolia naquela variação do tema, enquanto prosseguia sozinho o que a voz tinha anunciado. Os músicos de jazz chamam-lhe swing. O prosseguimento da beleza em território desconhecido, o desenho de uma arquitectura instantânea e efémera, «just for the kicks».
Enquanto caminhava na rua deserta, às quatro da manhã, em direcção a casa, Jeff sentia-se momentaneamente satisfeito. Fumava um cigarro e pensava como se menospreza o sentido de estar vivo, como tudo vale a pena só para se poder sentir a solidão, o ecoar dos próprios pensamentos na noite vazia, o orgulho da própria presença. Mas sabia que era só uma questão de tempo, até chegar a casa, rodar a chave na fechadura, levantar-se no dia seguinte e subitamente deixar de se sentir imbuído em Beleza. Porque existe um desvão na escada da mente para o coração e há qualquer coisa de nós que fica sempre de fora da arquitectura da música, que é a razão pela qual os músicos de jazz depois de um set dizem sempre com as letras todas “Foda-se!”, com descontracção, sem descontracção não há swing, «foda-se» para a melancolia do mundo. Mais tarde, Michelle Pfeiffer acusá-lo-á: «Eu vi-te ontem à noite a repassar os sonhos. Tens talento, não tens? Mas vendes-te a tocar com o teu irmão e comigo música de cocktail em hotéis.»
A menina mora no andar de cima. Costuma descer pela janela e entrar no apartamento de Jeff, quando a mãe leva para a cama mais um namorado. Nas ruas lá em baixo, no café da esquina, na tabacaria, nos bancos de jardim, ecoam em surdina as notas de piano da noite passada. Dos prédios para o telhado, a secção rítmica oscila, swinga, marca o tempo na distância da Memória para o Agora! Jeff Bridges olha a menina com o respeito que só a infância inspira. Jeff Bridges coloca o olhar como Frank Sinatra colocava a voz, e as duas figuras sentadas lado a lado são como uma canção, um standard, «My Funny Valentine» ou «In a Sentimental Way».