domingo, 30 de março de 2008

O jogo de berlinde


Pintura de Carlos Botelho


«Uma vez, ao anoitecer, naquele quarto de hora ligeiramente turvo em que os candeeiros de Nova Iorque acabam de ser ligados e as luzes de estacionamento dos carros começam também a acender-se - algumas a acenderem-se, outras ainda apagadas - estava eu a jogar berlinde com um rapaz chamado Ira Yankauer na parte mais afastada da ruela que ficava mesmo em frente do toldo da nossa casa. Eu tinha oito anos. Estava a utilizar a técnica de Seymour, ou a tentar - aquele jeito lateral, aquele processo de fazer com que o berlinde fizesse uma curva larga a caminho do berlinde do adversário - , e a perder sem apelo nem agravo. Sem apelo nem agravo e sem tristeza. É que era aquela altura do dia em que os rapazes de Nova Iorque se parecem muito com os de Tiffin, Ohio, que ouvem o apito de um comboio distante no preciso momento em que a última vaca é conduzida à corte. Nesse quarto de hora mágico, perder ao berlinde não é mais do que perder ao berlinde. Também Ira, penso eu, estava igualmente suspenso do tempo, e se assim era, tudo o que lhe podia acontecer era ganhar ao berlinde. Como se saído desta quietude e em perfeita sintonia com ela, Seymour chamou por mim. (...) Seymour estava parado no passeio, diante do toldo, virado para nós, balançando-se nas pernas arqueadas, com as mãos enfiadas nos bolsos do casaco debruado a pele de carneiro. Com as luzes do toldo por detrás dele, a sua cara ficava sombreada, esfumada. Pela maneira como se balançava na aresta do passeio, pela posição das mãos - bem, pela quantidade de x que havia nele, compreendi então, tal como agora, que estava imensamente consciente da hora mágica do dia. "Não podias tentar não fazer tanta pontaria?", perguntou-me, ainda parado. "Se acertares fazendo pontaria, não passará de sorte." Falava, comunicava, e no entanto não quebrava o feitiço. Fui eu que então o quebrei. "Como é que pode ser sorte se eu faço pontaria?, retorqui, sem ser em voz alta (apesar dos itálicos) mas com bastante mais irritação na voz do que realmente sentia. Ficou um momento sem dizer nada, balançando-se simplesmente no passeio e olhando para mim com amor, como pressenti. "Porque sim", disse. "Ficavas contente se acertasses no berlinde dele - no berlinde de Ira -, não é verdade? Não é verdade que ficavas contente? E se ficas contente quando acertas no berlinde de alguém, então é porque secretamente não esperas muito isso. Portanto, terá de haver alguma sorte nisso, terá de ser por acaso." Desceu do passeio, com as mãos ainda enterradas nos bolsos do casaco, e aproximou-se de nós. (...)»


Salinger, J.D., Carpinteiros Levantem Alto o Pau de Fileira e Seymour (uma introdução), Quetzal Editores, Lisboa: 1991, pp. 178-181

segunda-feira, 24 de março de 2008

Bush, companheiro !

Não gosto muito de escrever sobre política "strictu sensu". Mas aqui fica a canção de Tom Zé, dedicada a uma pessoa que, infelizmente, está demasiado presente na vida de todos nós.

domingo, 16 de março de 2008

Escada para o Céu

sábado, 15 de março de 2008

Carta (2)

Bem-vindo, bebé.

Nasceste ontem, José, faltavam dez para as sete, e desde então existe no mundo «um novo começo». Não te esqueças nunca de que «és o Acontecimento, a infância misturada dos teus pais», como escreveu Jean-François Lyotard e, melhor do que eu, te poderá explicar a tua mãe, professora de Filosofia.
Que o mundo te chame muitas vezes, e te procure, todas as noites, se às vezes estiveres triste, para que possas estar no coração da vida, e não haja intervalos entre ti e os dias. Que aprendas a ser um justo, para que a tua vida possa ser uma parábola para os Homens. Que tenhas em abundância os bens da terra e os possas multiplicar pelos dons da amizade e do amor, para que «nunca te aproximes dos Outros com as mãos vazias». Que saibas reconhecer a Beleza e o Sofrimento. E que todos os teus sonhos se tornem realidade.

quarta-feira, 5 de março de 2008

Léo por Luiza

Tradução da canção muito bela de Léo Ferré pela grande poeta portuguesa Luiza Neto Jorge.


Tinhas umas mãos q'eram umas raquettes

Pépée

E sempre qu'eu te cortava as unhas

Apareciam flores na tua barbicha

Tinhas as orelhas dele, do Gainsbourg

Mas tu, para as dobrares à noite

Não precisavas de scotch

Ao passo qu'ele... já se vê! ...

Pépée



Tinhas uns olhos qu'eram umas vigias

Pépée

Com'as que se vêem no porto d'Anvers

Quand'os marinheiros com alma travessa

Olhos sobressalentes precisam de ter

Para a noite alheia muito melhor ver

Para melhor ver um chimpanzé

Em casa dos Ferré

Pépée



Tinhas um coração com'um tambor

Pépée

Dos que batem baixo sexta de Paixão

Às três da tarde a ver

Jesus o figurão

Soprar as suas trinta e três velinhas

Enquanto que tu só oito tinhas

Em sete de Abril

De sessenta e oito

Pépée



Gostava de ter as mãos da morte

Pépée

E também os olhos e o coração

Para vir deitar-me ao pé de ti

Que o cenário meu não é diferente

Pois co'os mortos sempre dorme a gente

Pépée

terça-feira, 4 de março de 2008

Rio Grande do Sul - Lisboa - Isle of Man

A Joanna voltou a Lisboa depois de seis meses no Brasil. «Com o português arruinado», diz o Carlos, que é angolano. O facto é que seis meses foram suficientes para deixar de flexionar a segunda pessoa do singular e passar a dizer coisas como «tu fala», segundo a norma do Rio Grande do Sul, e a exclamar «legau» (assim, com o -l- velarizado) em resposta às minhas patetices.
Agora, a minha amiga, que cresceu na Ilha de Man, bem ao Norte da Grã-Bretanha, acha que numa noite com quinze graus faz muito frio. O Brasil deixou as suas marcas... E no entanto, a Joanna não se coíbe de se queixar de ser mordida por um mosquito, no Chiado, depois de ter andado dias a fio enfiada na selva amazónica, onde dormia ao relento, após aplicar no rosto repelente para insectos.
A Joanna voltou a Lisboa com histórias de pessoas muito pobres e muito boas. Um dia por mês o bilhete do ónibus é gratuito e os habitantes das redondezas invadem a vila. Nesse dia, fecham todas as lojas, com medo dos visitantes indesejáveis.Dia sim, dia sim, come-se feijão com arroz. O que me fez lembrar uma cantilena dos meninos de um livro do Érico Veríssimo:«Um, dois, feijão com arroiz/Um, dois, feijão com arroiz» As famílias são numerosas e muito hospitaleiras. E as crianças gostam muito da escola, ao contrário do que acontece na Europa, diz a Joanna, que deu aulas de Inglês.

segunda-feira, 3 de março de 2008

The Catcher in the Rye


«'You know that song "If a body catch a body comin' through the rye"? I'd like - '
'It's "If a body meet a body coming through the rye"!' old Phoebe said. 'It's a poem. By Robert Burns.'
'I know it's a poem by Robert Burns.'
She was right, though. It is 'If a body meet a body coming through the rye.' I didn't know it then, though.
'I thought it was "If a body catch a body,"' I said. 'Anyway, I keep picturing all these little kids playing some game in this big field of rye and all. Thousands of little kids, and nobody's around - nobody big, I mean - except me. And I'm standing on the edge of some crazy cliff - I mean if they're running and they don't look where they're going I have to come out from somewhere and catch them. That's all I'd do all day. I'd just be the catcher in the rye and all. I know it's crazy, but that's the only thing I'd really like to be. I know it's crazy.'»

Salinger, J.D., The Catcher in the Rye, Penguin Books, p. 156