
Pintura de Carlos Botelho
«Uma vez, ao anoitecer, naquele quarto de hora ligeiramente turvo em que os candeeiros de Nova Iorque acabam de ser ligados e as luzes de estacionamento dos carros começam também a acender-se - algumas a acenderem-se, outras ainda apagadas - estava eu a jogar berlinde com um rapaz chamado Ira Yankauer na parte mais afastada da ruela que ficava mesmo em frente do toldo da nossa casa. Eu tinha oito anos. Estava a utilizar a técnica de Seymour, ou a tentar - aquele jeito lateral, aquele processo de fazer com que o berlinde fizesse uma curva larga a caminho do berlinde do adversário - , e a perder sem apelo nem agravo. Sem apelo nem agravo e sem tristeza. É que era aquela altura do dia em que os rapazes de Nova Iorque se parecem muito com os de Tiffin, Ohio, que ouvem o apito de um comboio distante no preciso momento em que a última vaca é conduzida à corte. Nesse quarto de hora mágico, perder ao berlinde não é mais do que perder ao berlinde. Também Ira, penso eu, estava igualmente suspenso do tempo, e se assim era, tudo o que lhe podia acontecer era ganhar ao berlinde. Como se saído desta quietude e em perfeita sintonia com ela, Seymour chamou por mim. (...) Seymour estava parado no passeio, diante do toldo, virado para nós, balançando-se nas pernas arqueadas, com as mãos enfiadas nos bolsos do casaco debruado a pele de carneiro. Com as luzes do toldo por detrás dele, a sua cara ficava sombreada, esfumada. Pela maneira como se balançava na aresta do passeio, pela posição das mãos - bem, pela quantidade de x que havia nele, compreendi então, tal como agora, que estava imensamente consciente da hora mágica do dia. "Não podias tentar não fazer tanta pontaria?", perguntou-me, ainda parado. "Se acertares fazendo pontaria, não passará de sorte." Falava, comunicava, e no entanto não quebrava o feitiço. Fui eu que então o quebrei. "Como é que pode ser sorte se eu faço pontaria?, retorqui, sem ser em voz alta (apesar dos itálicos) mas com bastante mais irritação na voz do que realmente sentia. Ficou um momento sem dizer nada, balançando-se simplesmente no passeio e olhando para mim com amor, como pressenti. "Porque sim", disse. "Ficavas contente se acertasses no berlinde dele - no berlinde de Ira -, não é verdade? Não é verdade que ficavas contente? E se ficas contente quando acertas no berlinde de alguém, então é porque secretamente não esperas muito isso. Portanto, terá de haver alguma sorte nisso, terá de ser por acaso." Desceu do passeio, com as mãos ainda enterradas nos bolsos do casaco, e aproximou-se de nós. (...)»