domingo, 30 de dezembro de 2007

sábado, 29 de dezembro de 2007

Oferece-se:


Depois da triste notícia do namoro da cantora e modelo Carla Bruni, minha antiga paixão platónica, com o presidente francês Nicholas Sarkozy, venho por este meio anunciar que ofereço os dois discos da senhora, quelqu'un m'a dit e no promises, à primeira pessoa a enviar-me um e-mail pedindo os dois objectos (agora) indesejáveis. Caso não haja e-mails até 10 de Janeiro, os CD serão entregues a um membro do PCP ou Bloco de Esquerda (o primeiro que atender o telefone) para animar as reuniões dos militantes base ou financiar a revolução do proletariado.
Que dor de alma! Bem dizia Péguy: «tudo começa em mística e acaba em política»...

quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

Little poppies, do you do no harm ?

Sylvia Plath


Escreveu sobre flores. Túlipas e papoilas. Vermelhas, cor de sangue e fogo, como uma ferida a pulsar. Flores irritantes nos quartos brancos e anestésicos, na monotonia da neve, mostrando memórias vivas que preferíamos esquecer. E flores doces como o ópio que gostaríamos de beijar.
As nódoas negras abrem o coração e deslocam um mar de mármore. O pôr-do-sol queima a infância até à raiz. O pai nazi parte o coração da menina. A neve cai como um dom.

domingo, 2 de dezembro de 2007

O Problema da Existência




Uma aula às crianças da quarta classe.


Professor de Inglês: Meninos, hoje vamos escrever uma carta ao Pai Natal em inglês.


Tiago: Não!!! Eu não acredito no Pai Natal desde os três anos.


Professor de Inglês: Eu acredito no Pai Natal.


Mariana: Eu também. Eu acredito em tudo. Até em fadas e duendes.


(No fim da aula)


Carlota: Professor, a Mariana diz que acredita em tudo, mas não acredita em Deus.


Professor de Inglês: Eu acredito em Deus, Carlota.


Carlota: Eu também.




segunda-feira, 26 de novembro de 2007

Ne Travaillez Jamais





Poema de um funcionário cansado

A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só
Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Por que não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Por que me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço
Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada mãe estrela música
São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo numa só noite comprida
num quarto só

António Ramos Rosa

sexta-feira, 9 de novembro de 2007

Lições de Lógica Elementar



Em L'écume des jours de Boris Vian, Chick recusa ir com a namorada Alise a um encontro com Colin. Falta um segundo elemento feminino que restabeleça o equilíbrio.
« - Très bien, dit Chick. Mais si tu crois que je vais accepter une proposition comme ça, tu te forges une fausse conception de l'univers. Il faut te trouver une quatrième. Je ne vais pas laisser Alise aller chez toi, tu la séduirais avec les harmonies de ton pianocktail et je ne veux pas de ça.»
Todas «as concepções falsas do universo» devem ser destruídas, neste romance em que se pescam enguias e trutas nas torneiras, os cozinheiros têm enorme prestígio profissional e os professores universitários são considerados a desgraça da família.
O resumo do livro: «Só existem duas coisas na vida: o amor, de todas as formas, com mulheres bonitas, e a música de New Orleans e Duke Ellington. Tudo o resto deveria desaparecer, porque tudo o resto é feio»


segunda-feira, 29 de outubro de 2007

Tempo





O tempo da perfeição circular de Sad Eyed Lady of the Lowlands, belíssima homenagem às mulheres e ao segredo do mundo, o tempo da alegria infinita de se estar vivo contra todas as reduções da vida.

sexta-feira, 26 de outubro de 2007

George Steiner Dixit

«A Europa, explicou, e a sociedade europeia com ela, e a sua civilização (ciência incluída, provavelmente), está numa crise profunda. (...) Pessimista? Sem dúvida. Mas para Steiner, há ainda um antídoto contra uma nova era de trevas: "Recolocar os professores na sua dignidade social e económica, donde foram escorraçados."»

Diário de Notícias
Notícia da conferência de Steiner em Lisboa na Gulbenkian

quinta-feira, 18 de outubro de 2007

Cello-Suiten



A minha cena preferida do filme O Pianista de Roman Polanski é quando Szpilman se refugia em casa de uma amiga violoncelista, depois de fugir do gueto de Varsóvia. Pela fresta da porta, o pianista vê-a tocar as sonatas para violoncelo de Bach. A música preenche o espaço frio do mundo e lembra o tempo de paz e o amor não concretizado por aquela mulher, os encontros e os momentos de alegria tornados impossíveis pelo anti-semitismo. A memória da Beleza, da dignidade do humano e da excelência da arte irrompem numa realidade absurda.

quinta-feira, 11 de outubro de 2007

Lisboa (2)

Foto de Arnaldo Madureira




«Fazia investigação sobre Cabo-Verde em Lisboa e os meus amigos, na maior parte cabo-verdianos, orientaram o meu olhar para uma presença africana muito mais antiga do que a vaga de imigração da segunda metade do século XX: uma presença com cinco séculos, ligada ao uso permanente de escravos para efectuar os trabalhos mais duros da vida quotidiana na capital. Isto, desde 1445. Lisboa tornou-se assim, ao longo dos séculos, uma cidade habitada por África. (…) E como diz o meu livro, e todos os investigadores antes de mim, esta presença influenciou forçosamente a construção da identidade lisboeta, pois sabe-se que os negros participavam em todas as actividades, laborais e lúdicas.»




Jean-Yves Loude, autor de Lisboa, na Cidade Negra, Entrevista à INPUK

sábado, 29 de setembro de 2007

Pépée

domingo, 23 de setembro de 2007

La ricerca delle radici

Primo Levi


Recentemente peguei no primeiro livro que li em italiano, Il Sistema Periodico, de Primo Levi, de cuja edição de bolso da Einaudi é extraído o excerto da entrevista de Philip Roth abaixo transcrito. Comecei a lê-lo ingenuamente sem dicionário, saboreando cada palavra isolada e atendendo mais às particularidades da língua do que à literatura. Cedo descobri que se tratava de uma tarefa impossível.
Várias coisas me ligam a Primo Levi, escritor sobrevivente de Auschwitz e testemunha dos campos de concentração. Em primeiro lugar, a consciência de que «o homem sofre injustamente». Numa antologia dos textos literários que o formaram como escritor e homem, La Ricerca delle Radici, Levi inclui em primeiro lugar um excerto do Livro de Job. É o mesmo problema que se encontra em Dostoievski e conduz à célebre fórmula: «Todos somos culpados perante tudo e todos e eu mais do que os outros» dos Irmãos Karamazov. Em segundo lugar, a admiração pelas «raízes profundas» de Primo Levi, que viveu na mesma casa onde nasceu em Torino. A mesma casa onde chegou vindo do lager da morte, quando ninguém da sua família o esperava. Admiração pelo significado que deu à sua profissão de químico, pelo conhecimento da dignidade dos ofícios.

«A proposito del radicamento, della rootedness: è vero che io ho radici profonde, e che ho avuto la fortuna di non esserne privato: la mia famiglia è stata in buona parte risparmiata della strage, e oggi io continuo ad abitare addiritura nell'alloggio dove sono nato. La scrivania a cui scrivo sta esattamente nel luogo in cui, secondo la leggenda, sono stato partorito. Perciò, quando mi sono trovato sradicato quanto piú non si potrebbe, ho certo provato sofferenza; ma questa è stata compensata dal fascino dell'avventura, dagli incontri umani, dalla dolcezza della convalescenza dal morbo di Auschwitz. La mia tregua russa, nella sua realtà storica, ha cominciato ad apparirmi come un dono solo molti anni dopo, quando l'ho depurata rivivendola e scrivendola.»
Primo Levi in Intervista di Philip Roth pubblicata il 26 e 27 novembre 1986 su «La Stampa»

domingo, 26 de agosto de 2007

Useppe


La Storia de Elsa Morante.

Livro muito belo e muito triste. Romance comprometido, de matriz anarquista, que vê a História como uma sucessão de assassínios e todas as revoluções como embustes.

«La guerra è stata una commedia, a' mà! (...) La Storia, è una commedia loro, che ha da finí.» (442)

Useppe, o menino cuja história é seguida pelo romance, durante os seus seis anos de vida, é uma personagem inesquecível. Pequenino bodisatva, guardião da pureza e verdades do coração humano. Apaixonado pela mãe Ida, pelo irmão Nino, quinze anos mais velho e pela sua cadelinha Bella. Apaixonado por todos.

«Quell' essere minimo e disarmato non conosceva la paura, ma un'unica, spontanea confidenza. Sembrava che per lui non esistessero sconosciuti, ma solo gente sua di famiglia, di ritorno dopo qualche assenza, e che lui riconosceva a prima vista.» (186)

Me lo dài un bacetto?

domingo, 19 de agosto de 2007

Poema

Biglietto di Natale a M.L.S.

Maria Luisa quante volte
raccoglieremo questa nostra vita
nella pietà di un verso, come i Santi
nel loro palmo le città turrite?

La primavera quante volte
turbinerà i miei grani di tristezza
dentro le piogge, fino alle tue orme
sconsolate - a Saint Cloud, sulla Giudecca?

Non basterà tutto un Natale
a scambiarci le favole più miti:
le tuniche d'ortica, i sette mari,
la danza sulle spade.

«Mirabilmente il tempo si dispiega...»
ricondurrà nel tempo questo minimo
corso, una donna, un àtomo di fuoco:
noi che viviamo senza fine.

Ognissanti' 54

Cristina Campo

sábado, 18 de agosto de 2007

Explicação de Marsilio Ficino

Biblioteca Medicea Laurenziana (Florença)

«Marsilio Ficino nasceu em Figline, em 19 de Outubro de 1433 e morreu em Careggi, em 1 de Outubro de 1499. Após os estudos de Humanidades, cursa Medicina e Filosofia em Florença. Relacionado com o círculo dos Médicis (seu pai era o médico dessa poderosa família florentina), foi ao jovem humanista que Cosme confiou a orientação da Academia por ele fundada, em 1462, incumbindo-o da tarefa de restaurar e divulgar o pensamento de Platão.
(...) À luz da contemporânea exégese histórico-filosófica, o platonismo dos florentinos não serve de critério para apreciar o autêntico pensamento de Platão. É um platonismo profundamente determinado por preocupações teológicas ou mesmo místicas e marcado por uma feição estética. O que de modo algum põe em causa a sua legitimidade como uma das mais interessantes formas de renascimento da visão platónica do mundo e muito menos pode impedir de reconhecer a sua fecundidade especulativa e o seu papel na preparação do advento da moderna visão da natureza, do cosmos e da ciência, ocorrido (os grandes intervenientes nesse processo - Copérnico, Kelller, Galileu - tinham disso consciência) sob a tutela de Platão. (...)»



Leonel Ribeiro dos Santos, Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento, Edições Colibri, pp. 250-255







segunda-feira, 13 de agosto de 2007

De profundis




T'avais les mains comm' des raquettes
Pépée
Et quand j'te f'sais les ongles
J'voyais des fleurs dans ta barbiche
T'avais les oreill's de Gainsbourg
Mais toi t'avais pas besoin d'scotch
Pour les r'plier la nuit
Tandis que lui... ben oui !
Pépée

T'avais les yeux comm' des lucarnes
Pépée
Comme on en voit dans l'port d'Anvers
Quand les marins ont l'âme verte
Et qu'il leur faut des yeux d'rechange
Pour regarder la nuit des autres
Comme on r'gardait un chimpanzé
Chez les Ferré
Pépée

T'avais le cœur comme un tambour
Pépée
De ceux qu'on voil' le vendredi saint
Vers les trois heures après midi
Pour regarder Jésus-machin
Souffler sur ses trent'-trois bougies
Tandis que toi t'en avais qu'huit
Le sept avril
De soixante-huit
Pépée

J'voudrais avoir les mains d'la mort
Pépée
Et puis les yeux et puis le cœur
Et m'en venir coucher chez toi
Ça chang'rait rien à mon décor
On couch' toujours avec des morts
On couch' toujours avec des morts
On couch' toujours avec des morts
Pépée

Léo Ferré




*




Avevi le mani come due racchette
Pepée
E quando ti tagliavo le unghie
Vedevo fiori sul tuo muso
Avevi le orecchie di Gainsbourg
Pero' alla sera andando a letto
Non le piegavi con lo scotch
Pepée

Due occhi simili a lanterne
Pépée
Quelle che splendono nei porti
Quando l'avere occhi di scorta
Farebbe gola ai marinai
Per osservar la notte altrui
Così come uno scimpanzé
Presso i Ferré
Pépée

Il tuo cuore come quei tamburi
Pépée
Che tacciono il venerdì santo
Verso le tre pomeridiane
Quando un Gesù spegne soffiando
Le sue trentatre candeline
E tu ne avevi solo otto
il sette aprile sessantotto
Pépée

Vorrei avere le mani della morte
Pepée
E poi gli occhi e poi il cuore
E poi coricarmi a casa tua
Non cambierebbe niente al mio scenario
Dormiamo sempre con i morti
Dormiamo sempre con i morti
Dormiamo sempre con i morti

(Traduzione M. Macario, adattata da R.M.)


sábado, 11 de agosto de 2007

Carta (1)

Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso.

É possível, porque tudo é possível, que ele seja

aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo,

onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém

de nada haver que não seja simples e natural.

Um mundo em que tudo seja permitido,

conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer,

o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.

E é possível que não seja isto, nem sequer seja isto

o que vos interesse para viver. Tudo é possível,

ainda quando lutemos, como devemos lutar,

por quanto nos pareça a liberdade e a justiça,

ou mais que qualquer delas uma fiel

dedicação à honra de estar vivo.

Um dia sabereis que mais que a humanidade

não tem conta o número dos que pensaram assim,

amaram o seu semelhante no que ele tinha de único,

de insólito, de livre, de diferente,

e foram sacrificados, torturados, espancados,
e entregues hipocritamente à secular justiça,

para que os liquidasse com «suma piedade e sem efusão de sangue».

Por serem fiéis a um deus, a um pensamento,

a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas

à fome irrespondível que lhes roía as entranhas,

foram estripados, esfolados, queimados, gaseados,

e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam vivido,

ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória.

Às vezes, por serem de uma raça, outras

por serem de uma classe, expiaram todos

os erros que não tinham cometido ou não tinham consciência

de haver cometido. Mas também aconteceu e acontece que não foram mortos.

Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer,

aniquilando mansamente, delicadamente,

por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus.

Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror,

foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha

há mais de um século e que por violenta e injusta

ofendeu o coração de um pintor chamado Goya,

que tinha um coração muito grande, cheio de fúria

e de amor. Mas isto nada é, meus filhos.

Apenas um episódio, um episódio breve,

nesta cadeia de que sois um elo (ou não sereis)

de ferro e de suor e sangue e algum sémen

a caminho do mundo que vos sonho.

Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém

vale mais que uma vida ou a alegria de tê-la.

É isto que mais importa - essa alegria.

Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto

não é senão essa alegria que vem

de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez

alguém está menos vivo ou sofre ou morre

para que um de vós resista um pouco mais

à morte que é de todos e virá.

Que tudo isto sabereis serenamente,

sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição,

e sobretudo sem desapego ou indiferença,

ardentemente espero. Tanto sangue,tanta dor, tanta angústia, um dia

- mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga -

não hão-de ser em vão. Confesso que

muitas vezes, pensando no horror de tantos séculos

de opressão e crueldade, hesito por momentos

e uma amargura me submerge inconsolável.

Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam,

quem ressuscita esses milhões, quem restitui

não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?

Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes

aquele instante que não viveram, aquele objecto

que não fruíram, aquele gesto

de amor, que fariam «amanhã»

E, por isso, o mesmo mundo que criemos

nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa

que não é só nossa, que nos é cedida

para a guardarmos respeitosamente

em memória do sangue que nos corre nas veias,

da nossa carne que foi outra, do amor que

outros não amaram porque lho roubaram.


JORGE DE SENA

domingo, 5 de agosto de 2007

Infância



Tonino Guerra, poeta italiano, argumentista de Fellini e Antonioni, romagnolo, profundamente ligado à cultura camponesa, feita de pobreza e simplicidade, disse uma vez estas palavras ao padre e poeta português José Tolentino de Mendonça:


«Sabe... um artista tem sempre os olhos na sua infância. Eu mantenho sempre que nós comemos a nossa infância... Se, por trinta anos, comi os 'involtini' da minha mãe isso é uma droga: são os 'involtini' melhores do mundo; tal como o 'spaghetti que comia às sextas-feiras; tal como o salame... Estamos ligados a coisas tão remotas.»



quinta-feira, 2 de agosto de 2007

Lisboa (1)

"Eu chorava como um tolo pelas ruas com a delicadeza das pessoas".

Caetano Veloso, doutor em Filosofia, um dos maiores escritores brasileiros de canções conta a sua primeira visita a Lisboa nos anos 60.

sábado, 28 de julho de 2007

Inverno



Invernos passados a ler Dostoievski num pequeno café em Carcavelos, cuja porta funcionava como ponto de passagem para as pessoas de um bairro. A memória de uma tarde em Padova na igreja de S. Francesco. Os dias muito frios a escrutinar os sinais de amor nas páginas dos livros. "Faço longas cartas para ninguém/E o inverno no Leblon é quase glacial". Um poema de Antônio Cícero. As primaveras tão fugazes. "Jamais ne vient l'avril dans le fond de mon cœur/Cet éternel hiver qui bat comme une caisse/Qu'on clouerait sans répit depuis que ma jeunesse/A décidé d'aller se faire teindre ailleurs".

segunda-feira, 23 de julho de 2007

à flor do mar


Laura Morante no filme de João César Monteiro, à flor do mar, de 1986. "Domandiamo indecisamente/La neve e' piu' silenzio o l'uguale dell'azzurro?"

segunda-feira, 16 de julho de 2007

O amor que move os astros




Sonhei que estava em Florença. Era um sonho tão real que conseguia sentir o calor da atmosfera na pele, o ruído dos autocarros e todos os cheiros da cidade. Tinha levitado: abrira-se uma escada no céu e eu percorria as ruas florentinas como se me bastasse pôr um pé atrás do outro.
Acabara de sair da estação de Santa Maria Novella. Estava já na Piazza dell'Unità. "Amo-te no intenso tráfego/Com toda a poluição no sangue." No comboio uma rapariga italiana tinha-me perguntado a mim, um português, se estávamos a chegar a Florença. "Andiamo a vedere questa Firenze", disse para os amigos.
Vou passar pela catedral de Santa Maria del Fiore, pela Piazza San Giovanni, o fugídio mármore toscano nos meus olhos. Como te conseguiram os homens erguer no ar? Como é possível a Beleza permanecer tanto tempo no mesmo sítio? Entrar no Duomo é como entrar no coração da cidade.
«Chi si introduce nel mio ventre / esce / lavorato dal sapere cristiano e dalla preghiera / di molte, molte generazioni».
Sigo para a Piazza della Repubblica. Vagueio. Orsanmichele. Numa destas ruas Dante viu Beatrice quando ela ainda era menina e não mais deixou de a amar. Ó cidade em que mesmo as ruas fora do centro se chamam Marsilio Ficino.
E que lhe disseste quando a encontraste num jardim de Florença, com um livro de Simone Weil no bolso para lhe ofereceres ? Palavras secretas que talvez a cidade continue a guardar. "Com os seus olhos muito claros voltados para o centro / Do amor, na operação poderosa /Do amor"
Hei-de voltar a casa pela Via dei Cerrettani, entrar na Feltrinelli e sentar-me a ler um bocado.

Nota:

Citações de poemas de Daniel Faria e Mario Luzi

quinta-feira, 12 de julho de 2007

Pentecostes


«Pouco a pouco faz-se silêncio na praça. O momento supremo vem aí. De repente um foguete sobe ao ar, o estrondo do morteiro é o sinal para que as raparigas e os rapazes, que descansavam, se dirijam aos tabuleiros respectivos. Novo silêncio. O sino da igreja de S. João dá dois toques, é o seu modo de dizer: "Preparem-se". A rapariga e o rapaz baixam-se e, cada um do seu lado, agarram firmemente as bordas do cesto que sustenta a armação. O sino da igreja dá o terceiro toque. Então os tabuleiros são levantados num só impulso, num arranque de braços, equilibram-se e firmam-se outra vez na cabeça das raparigas, e o arrebatamento, a comoção, o entusiasmo varrem a praça, agitam os espíritos, como se de um novo Pentecostes se tratasse, um Pentecostes ao contrário, com as pombas a subirem do chão em vez de descerem do céu."
José Saramago in Celebrations of the Mediterranean Sea

domingo, 1 de julho de 2007

Código de Trabalho

"Quem quer que tenha alguma experiência neste aspecto sabe como eram verdadeiras as palavras de Catão: Nunquam se plus agere quam nihil cum ageret, nunquam minus solus esse quam cum solus esset - «Nunca ele está mais activo do que quando nada faz, nunca está menos só que quando a sós consigo mesmo.»"

Hannah Arendt em A Condição Humana

O Comissário

Sábado à tarde, no Chiado, um senhor que canta fado na rua tentava convencer um polícia, aparentemente pouco satisfeito com as suas actividades musicais. " O comissário já aqui cantou comigo duas vezes", dizia o fadista ao céptico agente de autoridade. Eu, crente absoluto na qualidade da voz do chefe de polícia, mas sem qualquer tipo de autoridade, limitei-me a descer a rua com um sorriso.